uma rede clandestina de sussurros
Das tantas delícias que uma amizade pode nos dar, tenho enorme apreço pelos amores compartilhados. Lembro quando chegamos na cidade de Cachoeira, inebriante pela sua beleza misturada ao calor que não nos permitia ficar em pé por muito tempo. Uma cerveja para refrescar, uma maniçoba para aquecer. O balanço perfeito.
De barriga cheia, chegamos ao grande salão para escutar Noemi Jaffe. Não a conhecia, mas Malu sim. Noemi - perdoem a minha mania esquisita de chamar as pessoas pelo primeiro nome, como se de alguma forma fôssemos íntimas - tem uma relação peculiar com as palavras, parece que as usa como quem está despretensiosamente a dançar. É uma delícia.
Fato é que saímos de lá querendo todos os seus livros e decidimos comprar os mesmos, num gesto sutil de cumplicidade por compartilhar o amor. A nossa amizade é cheia de amores.
Passados alguns anos, veio a pandemia. Numa súbita decisão, passamos a reunir os amigos com uma frequência cada vez maior para ler Freud. Quando parecia que aquele tempo já não mais acabaria, quando o prego já não aguentava mais o peso do relógio, Malu surge com um convite ao sussurro. Explico: ela havia pensado em abrir um espaço virtual onde convidados teriam o microfone aberto para sussurrar tudo aquilo que só as paredes de casa podiam escutar.
Juntas embarcamos em mais uma aventura, numa aposta gostosa de entrelaçar a psicanálise, a literatura e a filosofia. Cada um de sua casa, unidos por uma tela luminosa, nos encontrávamos para ouvir os sussurros num momento em que vivíamos em uma suspensão de tudo. O projeto, fazendo alusão ao seu nome, teve começo-meio-fim, durou o tempo da pandemia.
No mesmo ano, Noemi lançou um livro: "o que ela sussurra".
Hoje, abri na página 23 e Nadejda estava a dizer:
"acho que uma viagem contínua dessas duas partículas de pó, você e meu sussurro, pode, essa sim, organizar desordenadamente uma transformação oculta, que vai se aninhando despercebida no colo dos inconformados, dos poetas sem palavras, das mulheres sem marido, das mulheres espantadas, dos que não encontraram um lugar mesmo tendo morada, dos que não sabem que horas são mesmo quando têm um relógio [...]".
Após a morte de Óssip Mandelstam, Nadejda sussurou os poemas do seu marido dia após dia, numa tentativa de mantê-los vivos, de preservar e dar dignidade à concretude das palavras. Mas, mais do que isso, numa tentativa de conter o tempo, segura-lo um pouquinho para si, fazer com que ele "passe menos e mais devagar pelos lugares onde nós falamos".
Assim, compartilhamos amores e formamos uma rede clandestina de sussurros.
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