clínica em movimento

 




trabalho apresentado no Congresso da Universidade Federal da Bahia em março de 2023.

no ano de 2022, guiados pelo fio que nos conduz à psicanálise, estudamos juntos o seminário de Lacan sobre a transferência. a partir dele, decidimos criar uma mesa intitulada "amor, desejo, corpo: diálogos sobre a transferência", onde cada um de nós recortou o que nos fazia questão. na mesa estiveram presentes amigos que escolhi caminhar perto, amigos de coração, amigos de profissão

----------------------------

Fragmento 1:


À força de não conseguir pensar em outra coisa havia aprendido a pensar a frio, para que as recordações inevitáveis não machucassem nenhum de seus sentimentos (Garcia Márquez, 2018, p.289)

"É porque é", assim ela me disse. "Pro que é, não tem discussão e fim de papo. Agora pode ir". Foi assim que nos conhecemos, em uma noite quente no bairro em que a minha equipe fazia campo todas as quartas-feiras. No Corra pro Abraço, as equipes são formadas por pessoas que escutam. É o que a gente faz na rua: escuta. Se há algo que nos une, arriscaria dizer que é a disposição de se deslocar pelos espaços habitados na nossa grande cidade e ofertar escuta para as diversas vozes que estão, a todo tempo, ao seu modo, falando. Foi em uma dessas andanças que conheci Rosa; enquanto caminhava com uma trouxa na mão, intercalava entre falar e cantar aos ventos - não tenho dúvida de que eles têm ouvidos aguçadíssimos. Como de costume, a camisa que a nossa equipe veste ao transitar chega antes do nosso próprio corpo, fazendo com que muitos dos que não conhecemos se aproximem com a (quase, mas nem sempre) certeza de que algo do que eles precisam resolver seja atendido. Carteira de identidade, auxílio aluguel, passaporte, tristeza, confusão. Rosa se aproximou e apenas chorou.

Tentei lhe perguntar o que havia acontecido, ao que ouvi como resposta o já elucidado "é porque é" como justificativa para a sua solidão, para todos os anos em que fazia da rua o seu espaço de sustento, alegrias, sono, pesadelos e algumas muitas violências. Fui embora quando Rosa me pediu que fosse, pois falar doía e não queria mais chorar. Mas, na quarta-feira da semana que vem estaríamos ali novamente, eu, a minha equipe e Rosa, que aos poucos passou a se aproximar. À ela, foram necessárias idas quase que diárias à sede do Corra pro Abraço para que pudesse apenas chorar. Aos poucos, à medida que conseguia construir algo sobre a urgência avassaladora em que vivia desde muito nova nas ruas, pôde começar a falar também da dor de cabeça que lhe perturbava, que ainda que fosse grande, não era o suficiente para calar a imensidão com a qual o mundo se apresentava para ela.

Na lógica de uma clínica conhecida como a mais tradicional, os que vêm ao nosso encontro partem, na maioria das vezes, de um sofrimento acompanhado da suposição de que nós teremos a chave para fazê-los sair desse circuito de dor. Aqui, nessa clínica que se faz na rua e, portanto, em constante movimento, a aposta vem do outro lado: somos nós quem vamos até àqueles que estão prontos para falar. O movimento contrário se dá não por não haver sofrimento, muito menos porque os sujeitos em questão se encontram emudecidos, mas sim porque a possibilidade de endereçamento é precária a ponto de que o próprio ato de ir e vir daqueles que vivem nas ruas seja limitado; sendo assim, o movimento torna-se um ato político, sobretudo no que tange ao reconhecimento de que o inconsciente se manifesta em qualquer lugar - e se trabalhamos a partir dele, do inconsciente, podemos trabalhar em qualquer lugar.

Para mim, o essencial do trabalho na rua é a aposta em um endereçamento, a aposta na criação de um espaço onde o sujeito fale sobre o modo singular com que vivencia a sua urgência, mas implica também em uma escuta de testemunho dos contextos e situações de violência. É um trabalho atravessado, a todo tempo, pelo que há de mais cru no que concerne ao tempo: tempo das feridas e cicatrização, das doenças e dos medos, do tempo lógico e do tempo mais do que cronológico das violências e arrebatamentos. Portanto, trabalhar nesse contexto é entender que o tempo é um elemento que estará, inevitavelmente, presente e o seu manejo se dá de um modo outro em relação à clínica hegemônica. Como se dá, sigo aprendendo a cada dia.


Fragmento 2:

No começo era o amor. É dele, do amor, que Lacan inicia a sua aventura no Banquete de Platão e se vê às voltas com o amor que está em jogo na relação transferencial. É desse amor que também escolho partir, pensando no movimento que se percorre para que ele se desloque e se transforme em amor ao saber, ao saber singular da história, do sintoma de cada um. Persigo-o em busca do que faz com que as recordações inevitáveis e dolorosas [trazidas na epígrafe] cedam espaço para a construção de um saber que não é nem sabido, nem descoberto, mas produzido. Para que essa transformação aconteça, primeiro é preciso que haja endereçamento a um outro e é a partir do discurso de Fedro, esse que remete à metáfora do amor (onde estão presentes éràstes e érôménos, amante e amado) que Lacan localiza o lugar do analista como situado fora dessa dinâmica. Esse outro ao qual se endereça não é qualquer um: Sócrates recusa ser amado e isso marca bem que a relação em questão não se dá de sujeito para sujeito, nisso que chamamos de intersubjetividade.

No Banquete, enquanto os presentes faziam os seus elogios ao amor, Alcibíades elogia o amor a partir do outro, do seu semelhante. Em seu discurso, se dirige à Sócrates na tentativa de fazer dele "algo completamente submisso e subordinado a um outro valor que não o da relação entre sujeito e sujeito. Frente a frente com Sócrates, ele manifestou uma tentativa de sedução, quis fazer dele, e da maneira mais explícita, alguém instrumental, subordinado a quê? ao objeto de seu desejo. [...] Sócrates, ali, não é mais que um invólucro daquilo que é o objeto do desejo" (Lacan, 1960-1961, p.222). E, se em sua essência o desejo é desejo do Outro, Alcibíades é movido por um amor em busca do que deseja Sócrates. Essa é a entrada na transferência, onde se parte de um não saber para uma suposição de que se saiba no outro. No encontro com o analista, supõe-se o que falei há pouco, de que nós temos a chave para interromper o circuito de dor. É, portanto, a partir dessa suposição que o "é porque é" de Rosa passa a tomar outras facetas, na tentativa de construção de história e narrativas acerca de si.

Transferência é laço que se passa por um endereço de fala. Alguns pontos conectados aqui e ali e a estrutura de pergunta-resposta vai tomando forma, onde a pergunta é endereçada ao que supostamente detém o saber que falta ao sujeito.

Ora, é à questão formulada ao Outro, quanto ao que ele pode nos dar e ao que tem para nos responder, que se liga o amor como tal. Não que o amor seja idêntico a cada uma das demandas com as quais o assediamos, mas ele se situa no mais-além dessa demanda, na medida em que o Outro possa ou não nos responder como última presença (Lacan, 1960-1961, p.215)

O modo com o qual Lacan pensa a transferência, nesse momento do seu ensino, é a partir da demanda de amor que carrega consigo o desejo, é o que orienta o sujeito em direção à questão do desejo. É diante dessa relação entre sujeito e desejo que partimos, é da suposição de que há um parceiro que responde que a transferência se dá de início. A busca indica movimento, vida, ação frente ao que se apresenta ao sujeito como contingente e como ele se constitui a partir do encontro com o Outro, a partir da marca de linguagem que é dada desde o início e como o pequeno outro também é incluído nessa caça ao tesouro própria a cada um. O movimento é a tentativa de dar contorno às recordações inevitáveis, contorno esse distinto do pensamento a frio, que em nada afasta a crueza das lembranças que insistem em aparecer.


Fragmento 3:

Eis a marca da minha desinvenção: meu desencontro com minha estória (Salum, 2016, p.39)


Todas as semanas íamos lá. Batíamos na porta e aguardávamos um tempo até que ele abria uma fresta, de modo que era possível ver apenas seus olhos. Castanhos, escurecidos com o tempo. De início, o pedido: vamos resolver tudo, todos os documentos que faltam, os benefícios a receber, os reparos que a casa precisa e o que mais surgir. Sempre surgia, nunca deixou de surgir. Diferente de Rosa, João não dava espaço para as lágrimas correrem e ocupava todo o tempo que podia com a palavra. Trabalhar com a urgência é um pouco refinar os ouvidos para o que há de concreto e o que há de singular, o que nem sempre é fácil. O que não cessa de surgir aponta para a face violenta da situação em que João se encontra, mas também para o que se pode escutar dele enquanto sujeito; supõe-se um sujeito para que se possa a partir daí operar com o seu material de fala. O que de início parecia solto, foi aos poucos ganhando liga: o seu olhar para uma Salvador à noite lhe lembra Gotham City, a cidade do Batman, a sua história de quadrinhos preferida. Usa o Batman emprestado para poder falar de si e então passa a recordar: dos ataques que sofreu quando saía nas madrugadas para reciclar, das estratégias que criou para se defender, da época em que ensinou os irmãos a ler e a escrever, do dia em que conseguiu juntar dinheiro para comprar uma revista em quadrinhos, que veio a ser a sua preferida. Uma história passa a ser construída.

À João, nunca lhe foi pedido que abrisse mais a porta. A escuta foi sustentada pela brecha. Brecha essa que, retroativamente, pôde ser entendida como uma representação metafórica do processo transferencial: ora fechada, entreaberta; ora aberta, escancarada, mas sempre suficientemente possível de fazer a palavra transitar. Volto ao fragmento 2, onde insisto na importância do fazer-se ouvir pelo outro, para ir um pouco adiante: se há na entrada da transferência o amor ao sujeito suposto saber, o que vemos no seu desenrolar é a constituição do amor ao saber; em 1973, Lacan formula que a transferência é o amor que se endereça ao saber, elidindo daí o sujeito suposto. A esse saber, ele o adjetiva como um horror. Mas por que horror? Porque o saber, esse que nós trabalhamos a partir da hipótese do inconsciente, ele escapole. É como um encontro marcado com um real, onde o que se encontra é sempre a falta de encontro, o desencontro. "É de um lugar diferente de toda e qualquer apreensão do sujeito que se revela um saber, visto que ele só se oferece naquilo que do sujeito é engano" (Lacan, 1967, p.337). No entanto, ele lança uma aposta: o amor ao saber é uma virada do horror ao entusiasmo. A esse saber, não se trata de descobri-lo, é preciso inventá-lo.


Fragmento 4:

Tal escrita não foi construída pelo passado, e muito menos foi uma espécie de 'caça o tesouro', no qual deveria procurar, no mais íntimo de meu 'baú de memórias', a chave que abriria a porta e me salvaria de meus mais preciosos sintomas. Ao contrário, tratava-se do passado que não passava. Daquilo que, sem autorização prévia, insistia em fazer parte de meu cotidiano e me apresentava um presente com sabor de passado e, ao mesmo tempo, um passado atualizado que sugeria o renascimento do vivido (Salum, 2016, p.52)

Pensar a transferência na rua é fazer uso da função do sujeito-suposto-saber para produzir laço, apostando que é essa mesma função que permite a passagem do amor ao amor que se endereça ao saber. Nas voltas que o sujeito dá com aquilo que lhe escapa, sendo esse o próprio movimento do inconsciente que, de acordo com Lacan, "nunca despista tanto quanto ao ser apanhado em flagrante" (Lacan, 1967, p.329), se produzem fenômenos de repetição; o que não quer dizer que transferência se equivale à repetição. Não. O que se repete, se repete sempre de um novo lugar e ela, a repetição, é o que o sujeito tem de mais próprio, singular, é o que aponta para a sua relação com o desencontro, com o enigma.

O que está em jogo na presença do passado é, em realidade, presença em ato - ato que implica que há sujeito e, portanto, criação: "se a reprodução é uma reprodução em ato, então existe na manifestação da transferência algo de criador" (Lacan, 1960-1961, p.219). Por que é preciso que o sujeito se repita, incessantemente? Me recordo de um poema onde a escritora portuguesa diz que há sempre um desenho que se perde na tradução, mas há sempre algo que se ganha no meio do caminho. Penso que é o de que se trata na repetição provocada pela transferência: é a partir daí que é permitido ao sujeito que se construa, fabrique, reinvente. É nessa estrutura própria de ficção que é possível criar.

Já que trouxe a ficção, retomo a epígrafe do fragmento 1, quando trago uma passagem de Cem Anos de Solidão, romance esse que marca muito precisamente as repetições - presentes sobretudo nos nomes da família que são sempre os mesmos - como o que se repete de um lugar diferente. Sei que para Rosa, João e tantos outros, muitas vezes lembrar foi custoso, essa tal das recordações inevitáveis que não cessavam de reaparecer machucavam, seguem machucando. O trajeto ao amor endereçado ao saber não é fácil, a virada do horror ao entusiasmo é sempre uma aposta que está posta desde o início. Acho que aqui entra a dimensão do tempo, essa que marquei como sendo algo peculiar no que tange ao trabalho em movimento e que se presentifica e se confunde com as urgências, violências, desencontros e aparições. No entanto, o nosso trabalho começa a partir da aposta. Da aposta na construção do laço e de tudo o que pode ser produzido a partir dele. O nosso trabalho é com o inconsciente, que se manifesta em qualquer lugar. Portanto, sigamos nos movimentando.


----------------------------

Referências:

Garcia Márquez, Gabriel. Cem Anos de Solidão. 103º ed. Rio de Janeiro: Record, 2018

Lacan, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência, 1960-1961. Trad: Dulce Duque Estrada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Lacan, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Trad: M.D. Magno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008

Lacan, Jacques. O engano do sujeito suposto saber (1967). Outros Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.

Lacan, Jacques. Nota Italiana (1973). Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003

Salum, Luciana. Fragmentos: sobre o que se escreve de uma psicanálise. 1ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2016.

Soler, Colette. A repetição na experiência analítica. Trad: Elisabeth Saporiti. 1ª ed. São Paulo: Escuta, 2013.

Soler, Colette. O que faz laço? Trad: Elisabeth Saporiti. 1ª ed. São Paulo: Escuta, 2016.


Comentários

Postagens mais visitadas