"ao redor do buraco, tudo é beira"
Coloquei três pedacinhos de casca de árvore sobre uma folha de papel. Olhei. Olhei, julgando que olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito. Olhei as três lascas como as três letras de uma escrita prévia a qualquer alfabeto. [...] Percebo que dispus sobre o papel branco involuntariamente na mesma direção que segue minha língua escrita: toda "carta" começa à esquerda, ali onde enfiei minhas unhas no tronco da árvore para arrancar a casca (Huberman, 2017, p. 9).
Em sua ida à Birkenau, Didi-Huberman recolhe ínfimas cascas de uma árvore e é a partir delas que lhe é possibilitado pensar num campo de concentração a partir de sua história própria. No livro intitulado Cascas, se interroga sobre a memória do Holocausto a partir de uma reflexão que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva. É ao olhar para as cascas e para os registros fotográficos, que lhe é possível criar modos de legibilidade do que é aquele espaço e pensar como que um lugar de barbárie passa a ser um lugar de cultura, tornando-se um museu que recebe milhares de visitantes ao longo do ano. A escrita não cessa onde o livro termina, tampouco cessam as inquietações e o esforço do filósofo no sentido de singularizar as experiências ali vividas. Ainda que seja impossível de se tocar no cerne de toda questão que o atravessa, havia uma urgência que o empurrava pra frente. A impossibilidade não tem a força de fazer com que recue frente ao horror, frente ao horror que não pode ser dito. Mas empurra Didi-Huberman para frente. Barthes (1977) nos diz que é graças à insistência de representar um real que é, em essência, não representável, que a história da literatura existe. E quando fala de literatura, se refere aos modos de trapacear a língua, de brincar com os significantes e fazer girar o saber em torno do que é impossível de ser tocado pela via simbólica, mas que não pode prescindir dela.
Diante da leitura e discussão do seminário sobre a ética da psicanálise, o que particularmente me fez questão foi entender porque das Ding ocupa lugar privilegiado na transmissão de Lacan entre os anos 1959 e 1960. Nesse seminário, ele volta ao Projeto para uma Psicologia Científica freudiano para recortar das Ding, a Coisa, referindo-se a ela como o que se perde no encontro, o que cai da experiência com o próximo. Situando-se para além do princípio do prazer, a Coisa é desde o início articulada ao Real – esse que aqui está sendo elaborado como o impossível de ser dito. Se Lacan diz que pretende partir da referência à fala e à linguagem para precisar a função do desejo na economia da nossa experiência, é porque o sentido do desejo é o que está em jogo no que diz respeito à sua interrogação ética, uma vez que a Coisa está ali onde o sujeito se dirige; ela é a responsável pelo encaminhamento ao mundo do desejo. Desse modo, podemos pensar clinicamente como cada sujeito encontra, ao seu modo, meios de se relacionar com o que é impossível de ser representado. Trago Suassuna no título, – ao redor do buraco, tudo é beira – pego em suas mãos e o acompanho em minha investigação, uma vez que o ato de bordejar o que escapa ao sujeito nos aponta para o que há de mais singular de cada um. Mas vamos ao começo.
Lacan inicia a sua transmissão marcando as distinções entre a ética aristotélica e a freudiana. Em ambas é possível localizar o prazer como assumindo papel importante, mas são tratadas de modos distintos. O prazer aparece como ponto de referência nas instâncias psíquicas presentes no Projeto, uma vez que é a partir do princípio do prazer que há um direcionamento de energia, ou descarga pulsional, que busca atingir a satisfação desejada. Ele tem como principal característica ser um princípio econômico, já que é responsável pelo controle da quantidade de excitação entre prazer e desprazer. É desse modo que é responsável por regular os trilhamentos que a energia conserva após sofrer os seus efeitos; no entanto, as primeiras experiências de satisfação levam o bebê a alucinar a satisfação da necessidade, de modo que o princípio de realidade entra em jogo como um princípio de correção, modificando os caminhos percorridos para se atingir a satisfação. É o que leva Freud a afirmar em o Mal estar na civilização que, no tocante à felicidade, não há nada preparado: nem no macrocosmo, nem no microcosmo. Cada sujeito, ao seu modo, percorre o caminho rumo ao seu prazer.
Ainda seguindo os rastros do Projeto, Lacan frisa que a experiência de satisfação é inteiramente suspensa ao outro – o que é bem trabalhado posteriormente no estádio do espelho, onde o outro enquanto semelhante aparece como suporte do Outro, mas também está já em Freud quando ele nos propõe o Nebenmensch, o complexo do próximo. Esse complexo se trata da primeira experiência de satisfação na qual o objeto que vem de fora é um semelhante: "quando a criança está diante de um semelhante, o eu inscreve no interior do sistema psíquico tudo o que é familiar: os traços do rosto do outro, os movimentos do corpo etc. Tudo isso se transforma em um complexo de representações" (Safatle, 2006, p. 157). No entanto, há algo que escapa da possibilidade de representação, algo que resta inassimilável. Esse algo é a Coisa.
Se para a filosofia aristotélica nos dirigimos a um bem, Lacan faz uso do das Ding para marcar que é a ele que o sujeito aspira alcançar, uma vez que ele se situa como um horizonte na direção do qual, ou aquém do qual, o princípio de prazer regula os objetos de desejo. O bem, contrário ao que toda uma tradição filosófica acredita, se constitui como a primeira barreira que nos afasta propriamente do campo do desejo:
Na experiência de vocês tudo lhes sugere que a noção e a finalidade do bem lhes sejam problemáticas. Que bem exatamente perseguem vocês no que se refere à paixão? Essa pergunta está sempre na ordem do dia de nosso comportamento. A cada instante temos de saber qual deve ser nossa relação efetiva com o desejo de fazer bem, o desejo de curar. Temos de contar com ele como algo suscetível de desencaminhar-nos, e, em muitos casos, instantaneamente (Lacan, 1959/2008, p.262).
Há o bem e há o mal e é para além que das Ding se situa. Sendo aquela que padece do significante, a Coisa está do lado do Real, esse que aparece no seminário como o impossível de ser tocado, o que está para além do princípio do prazer e para além da rede de significantes – ainda que esse além só seja passível de articulação pela via da linguagem. Foram necessárias algumas lições para que Lacan voltasse ao Projeto para situar o princípio do prazer e o princípio da realidade e fosse mais além, para então poder se deter naquilo que escapa ao jogo das representações; a Coisa é o vazio em torno do qual elas se organizam. O princípio do prazer orienta a busca do objeto perdido, mas é esse mesmo princípio que acaba por conservar sua distância em relação ao fim, uma vez que esse objeto inalcançável. Na busca por das Ding, se acha outra coisa: Sache. Ainda que ambas sejam traduzidas do alemão para o português como coisa, Sache é passível de ser representada – quando Freud fala de representação de coisa, é a Sache que ele se refere.
Das Ding está em outro lugar, se situa fora-do-significado e é em direção à Coisa impossível de ser tocada, dita, falada, que o sujeito só pode bordeja-la com o significante. É na borda que algo se produz, é no ato de bordejar que o artista se localiza e não cede ao impossível. As cascas recolhidas por Didi-Huberman dão o nome ao lugar que os dirigentes de Auschwitz dedicaram ao extermínio das populações judaicas – a palavra Birkenau se refere aos bosques onde crescem as bétulas e foi cravando a unha em uma dessas bétulas que, posteriormente organizadas como palavras em um papel em branco, Didi-Huberman se propõe a pensar o que a casca lhe diz a respeito da árvore, o que a árvore lhe diz a respeito do bosque, o que o bosque de bétulas lhe diz a respeito de Birkenau. Seguindo a lógica de brincar com as palavras para contornar o real, o filósofo se encontra com o artista Christian Boltanski e se depara com um ateliê onde o que predomina são rostos recortados dos mais diversos lugares e colados nas paredes brancas. Movido pelo sonho de não esquecer ninguém, Boltanski construiu um anuário onde nomeava todas as pessoas, recusando-se ao fato de que os sem-nomes permaneçam esquecidos. Nascido em 1944, carrega consigo toda a catástrofe que se apresentava em sua infância e busca, a partir dela, produzir arte. Arte para dar forma ao despedaçamento: seja ele da memória, dos rostos sem dignidade de reconhecimento, ou da crueza do seu entorno:
Não se brinca mais diante da morte, mas ainda se brinca com ela (simples cemitérios de roupas, amarelinhas, jogos de xadrez, imagens, bonecas, obras de arte). Se isso não parece razoavelmente possível, será tanto mais necessário. Essa é a posição do artista e, em geral, daquele que encontra na imaginação todo um tesouro de recursos para fazer bifurcar o real (Huberman, 2010/2018, p.255).
Servindo-se do exemplo do oleiro, Lacan fala da construção do vaso como sendo uma modelagem que acontece a partir do nada: ex nihilo. As paredes e o fundo do vaso aparecem como as redes significantes modeladas pelo sujeito, ao seu modo, em torno da Coisa. A criação, ao invés de evitar esse nada, o presentifica, marca o seu lugar. É por isso que ele afirma que o vaso tem a função de trazer notícias sobre das Ding. É nesse seminário que, pela primeira vez, Lacan introduz a noção de extimidade, que aparece para adjetivar a Coisa: aponta para algo do sujeito que lhe é mais íntimo, interior, singular, mas que se situa no exterior. Não seria esse o encontro com a Coisa que cai da experiência com o próximo, que se perde no encontro? Miller (2010) concebe a extimidade como uma fratura constitutiva da intimidade, pois ali onde se espera o reconhecimento, o encontro com o que há de mais singular ao sujeito, se encontra com outra coisa. Se bifurca o real. Ali onde se espera reconhecimento se encontra outra coisa. Ali onde busco me satisfazer, não encontro a satisfação e por isso começo tudo de novo, incessantemente faço o meu retorno em circuito.
Ao apreender o seu objeto, a pulsão constata que não é exatamente por aí que se satisfaz. Desse modo, o fundamental que está em jogo é o ir e vir, os rodeios que são feitos. Aqui, julgo necessário abrir um parêntese: ao falar de pulsão de morte, Freud coloca a compulsão pela repetição como um limite à clínica, uma vez que é pensada sob a forma de desejo bruto de morte, de destruição até que se chegue ao estado inorgânico. Lacan vai além desse limite, uma vez que a destruição em jogo na pulsão é pensada como potência criadora. "Se a pulsão coloca em causa o natural, se por ela e a partir dela o natural tem que ser recriado, sua identificação com a vontade de destruição é legítima" (Garcia-Roza, 1990, p.135). E é a partir dessa destruição que há vontade de criação a partir do nada, vontade de recomeçar, vontade de reconstruir:
A verdade não é dita com palavras, mas com frases. Minha fotografia da "estrada do campo" ainda não passa de palavra incipiente. Pede para ser situada numa frase. Aqui, a frase não é outra senão meu relato por inteiro, relato feito de palavras e imagens inconsúteis. (Huberman, 2017, p.41).
Por ser inconsútil, por não haver costura no relato do horror, nos aproximamos do que se situa fora do sentido. A Coisa, que é fora do sentido, após assumir lugar privilegiado no seminário da ética, deixa de ser trabalhada posteriormente e Lacan passa a fazer uso do que chama de a sua única invenção na psicanálise: o objeto a. Ainda assim, julgo que não tenha sido em vão colocar essa Coisa como o centro da sua discussão sobre a ética, sobretudo se pensamos na sua articulação com o Real. A categoria do impossível vai acompanha-lo ao longo das discussões e, mais tarde, ele aparece como o impossível de se escrever. Em 1977, no entanto, muitos anos depois de ter proferido o seminário da ética, Lacan fala do Real da seguinte forma:
Eu quero dizer que não há nada do real senão naquilo que exclui toda espécie de sentido, é exatamente o contrário de nossa prática, porque nossa prática nada nessa espécie de indicação precisa de que não somente os nomes, mas simplesmente as palavras têm uma importância (Lacan, 1977, p.101)
Não é esse o modo que ele também fala de das Ding? Como sendo o fora-de-sentido que não pode ser tocado, apenas bordejado? Sendo o fora-de-sentido aquilo que não se inscreve nas representações simbólicas próprias ao pensamento do eu, é diante disso que o sujeito dá as suas voltas e é a partir daí que ele pode vir a se reconhecer - não imaginariamente, não com um senso de unidade, mas de modo a bifurcar o real. Sendo a casca a parte mais externa da bétula, ela se oferece ao exterior, ao olho que olha e vê nela a possibilidade que seja algo mais do que uma mera superfície. Ao se debruçar sobre elas, Didi-Huberman pode afirmar que há atos que são coletivos – pela sua potência e possibilidade de tratar da memória coletiva de um modo legível. Isso implica dizer que a superfície não é apenas uma superfície: ela requer um olhar atento, que olha para uma bétula que sobreviveu ao tempo e inclina-se a ver nela as inúmeras histórias que podem ser contadas. Quantos passaram por ali, conversaram, oraram, choraram? Quantas histórias podem ser contadas?
Assim como a borda, a superfície pode ser pensada como o que cai das coisas: advém delas, se separa delas e vem rastejando até a nossa vista, até que através do ato de olhar, arrancar, ordenar e escrever, seja possível reinscrever – incessantemente – a história dos avós de Didi-Huberman que ali morreram, mas também de cada um que por ali passou. Se bifurca o real e brinca com a morte a partir das palavras. E, sobretudo, não se rende ao fora-do-sentido. Ainda que seja impossível de se tocar no cerne de toda questão que nos atravessa, a impossibilidade não tem a força de fazer com que se recue frente ao horror, frente ao horror que não pode ser dito, mas que pode ser circunscrito.
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